As mil faces da Augusta

janeiro 4, 2010 at 9:50 am Deixe um comentário

Exposição em cartaz no CineSesc retrata a rua que há décadas simboliza a diversidade da metrópole

publicado no Guia da Semana em 01/01/2010

Augusto, no dicionário, remete ao sagrado e ao divino. Algo ou alguém digno de respeito e veneração. Sobrenome de imperadores na Roma Antiga e, em séculos menos distantes, adjetivo qualificador da arte circense.

Para quem vive na cidade de São Paulo, Augusta significa “coração pulsante”. O sobrenome de César dá nome à via que liga o Centro aos Jardins e alia em um mesmo cenário luxo e lixo, certo e errado, passado e futuro.

Habitada por comerciantes, prostitutas, executivos, mendigos, cinéfilos, gays, modistas, retrôs e artistas em geral, a Rua Augusta é hoje um dos mais importantes pontos de referência cultural da cidade. Sobreviveu ao abandono do poder público e ao preconceito, e hoje representa um marco da tolerância e do respeito à diversidade.

O lugar se alimenta de seus contrastes e, não por acaso, é terreno fértil para a arte. Especialmente a dos músicos, desde os que subiam a rua a 120 por hora aos que descem a ladeira de bar em bar, abrigados em diversos clubes de rock n’ roll que nos últimos anos se instalaram na parte que liga a Avenida Paulista ao centro.

Nas décadas de 60 e 70, a Augusta foi ponto de referência de consumo e estilo, especialmente para as mulheres da alta sociedade, algo como a atual Oscar Freire. Ícone da bossa nova na paulicéia, posteriormente serviu de refrão aos artistas da Jovem Guarda, ídolos de uma nascente classe média consumista e antenada com os valores da cultura norte-americana.

Já nos anos 80 e 90, a cena conheceu a decadência. Esta época ficou marcada pelo colapso dos pequenos comércios, rivalizados por Shopping Centers cada vez maiores e mais numerosos, e pela degradação do espaço público.

Condenada ao estereótipo da prostituição e da marginalidade, nos últimos 15 anos a Rua Augusta experimentou uma recuperação curiosa. Como em inúmeros outros exemplos, o diferencial não foram medidas de governos, mas sim ações de ocupação e reciclagem cultural de cidadãos comuns e empresas privadas.

Assim é que na deterioração urbana de seu lado central, paradoxalmente aconchegante, ou na imponência elegante da face Jardins, a Rua Augusta é hoje um grande mosaico, com peças de diversidade estonteante. Da galeria Ouro Fino à Ouro Velho.

Muitos tentaram, sem sucesso, decifrar seus segredos. Aos ultra-objetivos e pragmáticos de toda sorte, um aviso gentil: a contradição é a regra do jogo. A Augusta é impossível de definir. Esta é justamente sua mais precisa definição, e a contradição, seu elemento maior.

Um enquadramento difuso e arredio que justifica o plural em “Augustas”, exposição de obras do fotógrafo Eder Chiodetto, em cartaz no CineSesc.

Em panorâmicas que exaltam o movimento e parecem ultrapassar a fronteira entre a fotografia e o vídeo, Eder, que também é escritor e curador do MASP, retratou algumas faces desta paisagem complexa. Bares, pessoas, manequins, carros em movimento.

A proposta de investigar os limites estáticos da imagem permitiu misturar à visão documental doses generosas de abstração. Os retratos se aproximam, assim, da sobreposição seqüencial de imagens a que chamamos cinema.

Valem a visita e uma caminhada, em seguida, pelas calçadas da musa inspiradora.

Afinal, seja nos grafites, na vida pulsante, no rock n’ roll, no lixo, na arte, nas fotografias, no vídeo ou no dicionário, a Augusta segue imponente. Dando forma aos sonhos paulistanos, e por eles se deixando transformar.

A exposição “Augustas” está em cartaz até 31 de janeiro de 2010, no CineSesc. Rua Augusta, nº 2.075. De terça-feira a domingo, das 14h às 21h, de graça. Mais informações pelo telefone 3082-0213 ou no site do SESC.

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