O continuísmo na América secundária

maio 13, 2010 at 12:59 am Deixe um comentário

Como a política externa brasileira influencia os países vizinhos e projeta o Brasil para além do status de líder regional, ampliando o prestígio do país no cenário internacional

Por_Rafael Gregorio (Publicado na revista Diálogos & Debates, nº. 36)

DD36 – O Continuísmo na América Secundária (download)

Passada a euforia com a eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos, a América Latina contabiliza o saldo de um 2009 ainda conturbado, principalmente em função da crise econômica internacional deflagrada nos EUA com a quebra do Lehman Brothers, em 2008. Entre avanços e retrocessos, Barack Obama experimenta o choque de realidade, ao mesmo tempo em que a imprensa mundial e líderes internacionais ascendem Luiz Inácio Lula da Silva ao posto de ídolo, quase mito. Status muito bem recebido pelo presidente brasileiro, diga-se, em busca obstinada pela eleição de um sucessor.

Ameaças à paz e à estabilidade democrática parecem marcar a política sul-americana em 2009. O bolivarianismo, encabeçado por Hugo Chávez, se apresentou em discursos menos prolixos, é verdade, mas não faltaram polêmicas. E a América do Sul assiste à consolidação de governos que, a despeito de programas esquerdistas, rejeitam paralelos com o modelo bolivarianista – uma via alternativa que adotou Lula como referência e símbolo maior.

A AMÉRICA SECUNDÁRIA

Barack Obama tomou posse em 20 de janeiro deste ano. Após meio ano de sua administração, o cenário de mudança desenhado na campanha presidencial se revelou diferente do esperado. Eleito, o presidente americano ainda não conseguiu materializar boa parte do discurso de transformação que o elegeu, aí incluídas as relações com a América Latina.

Mesmo em tempos de crise econômica e recessão interna, diversos sintomas apontam para a manutenção da tradicional pouca relevância dada à região latino-americana. “A crise ameaçava provocar efeitos de desestabilização no continente. Porém, questões como o terrorismo e a proliferação nuclear ainda são as principais preocupações dos EUA”, diz José Augusto Guilhon de Albuquerque, professor fundador do Núcleo de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). “Nesse cenário, a América Latina continua sendo secundária.”

Episódios como o das bases militares na Colômbia, o recuo na desativação da base de Guantánamo e a manutenção de embargos contra Cuba, além da crise em Honduras, reforçam a idéia de continuísmo. Às voltas com a oposição republicana, dentro de um cenário interno conservador e cada vez menos benevolente, Barack Obama parece descobrir um terceiro obstáculo para mudanças na política externa: a grave situação das relações internacionais dos EUA.

A influência da direita no país é tão decisiva no governo democrata quanto fora no republicano. O caso Arturo Valenzuela (nome indicado por Obama para representar os EUA junto à América Latina) é ilustrativo. A aprovação pelo Senado, neste meio de ano, se operou sob pressão dos congressistas, especialmente do republicano Charles Grassley, defensor da sobretaxação do etanol brasileiro. O governo recuou.

E, até aqui, foi um dos maiores fracassos de Obama. Dentro e fora do país, estas incoerências começam a repercutir e a incomodar. Pesquisas da CNN e do USA Today revelam que a aprovação de Obama baixou, após seis meses de governo, de mais de 70% para aproximadamente 55%. Índices semelhantes aos de George W. Bush, considerando o mesmo tempo de mandato. E apesar do prestígio junto aos latinos, o

Governo Obama vem mantendo os mesmos critérios da era Bush para as relações com a América Latina: unilateralidade, imposição, descumprimento a tratados e organizações e combate ostensivo a ideologias esquerdistas, em especial à figura de Hugo Chávez.

UMA NOVA DIPLOMACIA BRASILEIRA?

Sintomaticamente, enquanto a boa vontade da imprensa mundial parece minguar com Barack Obama, cresce o prestígio internacional do presidente Lula. Também pudera: em tempos de crise geral o Brasil demonstrou solidez na economia. Em 2009, durante almoço do G20, o ex-metalúrgico foi chamado de “o cara” pelo presidente americano.

E, à semelhança dos inéditos 80% de aprovação no Brasil, Lula atingiu o status de referência internacional. Isso porque, nas palavras do brasileiro, o país foi “o último a entrar e o primeiro a sair [da crise]”.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o foco da diplomacia brasileira foi manter relações externas amistosas, um ambiente favorável para o desenvolvimento econômico do país. Essa tendência ou predisposição serviu de base para o reconhecimento da credibilidade do Brasil. Mas, nos últimos anos, os tradicionais critérios de não-intervenção e diálogo multilateral foram, em parte, substituídos por posturas mais independentes e assertivas. Como, por exemplo, o pleito por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, tendo como argumento os serviços prestados na missão de paz no Haiti; a associação com países desenvolvidos (G20) e periféricos (G77); a recusa da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA); mediações autônomas em conflitos regionais sul-americanos; e a criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), além do aumento em investimentos militares.

Segundo José Guilhon, essas mudanças não são altruístas. “A política externa do Governo Lula levou o foco do crescimento para a criação de um pólo alternativo de poder internacional que visa cultivar a liderança pessoal do presidente Lula”, afirma.

Na esteira contrária, Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, professor de Direito Internacional da USP, questiona tais mudanças. “Daqui a cem anos, o período que vai de Sarney a Lula será visto como uma fase de transição marcada pelo acúmulo de projetos iguais. Do ponto de vista estrutural, o que mudou na política externa brasileira? É uma linha de continuidade”, afirma.

O Brasil representaria um intermediário entre pólos conflituosos: a potência norte-americana e a insurgência bolivarianista de Hugo Chávez

O fato é que o Brasil (e Lula) tem se destacado no cenário internacional em função do vácuo deixado pelos EUA, antes líder e referência para as economias ocidentais. Para Pedro Dallari, a importância do Brasil decorre da sua capacidade de interlocução internacional. “O país tem a confiança do mundo em desenvolvimento e, ao mesmo tempo, possui uma cultura política e jurídica muito próxima do mundo desenvolvido ocidental”, explica o professor. O carisma e a popularidade de Lula chamam a atenção – é como se tivesse se tornado uma alegoria da visão que o mundo tem do país. Na definição de Pedro Dallari, “é o cara que vai ao Complexo do Alemão [favela carioca] e à FIESP com total tranquilidade, sendo aplaudidíssimo em ambos”. O modelo de gestão brasileiro já é referendado como via independente por líderes locais, como José Mujica e Maurício Funes, eleitos presidentes do Uruguai e de El Salvador. O Brasil representaria um intermediário entre pólos conflituosos: a potência norte-americana e a insurgência bolivarianista de Hugo Chávez. E, considerando as eleições presidenciais que se avizinham aqui, existe consenso entre os especialistas: vença quem vencer, pouco ou nada deve mudar nas condutas diplomáticas brasileiras.

O BOLIVARIANISMO RETRAÍDO

A esquerda latino-americana mais uma vez concentrou atenções. Unidos sob a Alternativa Bolivariana para as Américas, que prega resistência ao imperialismo, países como Venezuela, Bolívia, Cuba e Nicarágua comemoraram a adesão formal do Equador. Chávez, líder da insurgência socialista local, completou em fevereiro dez anos no poder. Seu primeiro mandato ficou marcado por conquistas nos setores sociais, além de massiva ascensão de populações antes miseráveis. Segundo Pedro Dallari, os fenômenos Chávez, Evo Morales e Rafael Corrêa são positivos sob a perspectiva processual. “Se antes haviam segmentos alijados do processo políticoeleitoral, agora eles foram mesmo incorporados”, diz.

Nos últimos anos, porém, Chávez tem comprometido os avanços do governo com gastos cada vez mais vultosos em nome do “socialismo do século XXI” – algo que nem ele sabe definir. Gastos principalmente nos acordos militares e nos processos de nacionalização. Os confrontos entre poder público e iniciativa privada, aliás, dão a tônica da política venezuelana recente. Nesta última temporada, o governo desapropriou o banco Santander e as americanas Cargill e Coca-Cola, entre outras. Em maio, 60 companhias petrolíferas foram nacionalizadas de uma só vez para a construção de um posto de produção estatal. Tanta hostilidade custa caro. Estimado em 6 bilhões de dólares, o ônus venezuelano em função dessas operações também agrava uma situação já fragilizada no país pelas baixas na cotação do petróleo durante a crise internacional. Somados ao controle artificial do câmbio, que mantém a moeda local no patamar de US$ 2,15 (tornando as importações mais atraentes do que a produção interna), a economia derrapa. Hoje, 94% das exportações venezuelanas têm origem no combustível. E o país importa mais da metade dos alimentos que consome.

Hugo Chávez tem poucos motivos para celebrar. Conseguiu sim aprovar a reeleição ilimitada em março, mas a vitória apertada – 54% a favor, 46% contra – revelou perda de poder. Problemas sociais como o aumento da violência, a degeneração dos sistemas de saúde e educação, além das mencionadas dificuldades de abastecimento, alimentam a oposição que já mira vitória nas eleições parlamentares de 2010. Os aliados mais próximos, Evo Morales e Rafael Corrêa, a despeito das recentes vitórias eleitorais, não são capazes de sustentar com meios próprios a busca socialista em seus países. Desse modo, a plataforma ideológico-revolucionária de Hugo Chávez na América Latina perde força.

GUERRA E PAZ

Nos últimos meses, a região latino-americana chegou muito perto de conhecer guerras entre seus membros. Por um lado assistimos à cordialidade entre bolivarianistas e Obama durante a 5ª Cúpula das Américas, que motivou até promessas de Chávez de restituir seu embaixador em Washington. Por outro, porém, o venezuelano ameaçou retirar-se da OEA em defesa de Cuba, aproximou-se de nações polêmicas como Líbia e Irã, e fechou contratos militares com China e Rússia para a compra de tanques e mísseis.

Com a Colômbia, as tensões venezuelanas chegaram a níveis extremos. Confrontos entre paramilitares e implosão de pontes e estradas na fronteira entre os dois países, além de prisões e retaliações econômicas de ambos os lados, tiveram a gota d’água na confirmação do tratado de cooperação internacional da Colômbia com os Estados Unidos.

Uma extensão do Plano Colômbia, o novo acordo prevê a instalação de até sete bases militares dos EUA na região da floresta amazônica colombiana e o deslocamento para o país de quase 1,5 mil funcionários norte-americanos, entre militares e civis. O que gerou desconforto inclusive no Brasil, incomodado com a extensão territorial coberta pelos aviões americanos, muito além do necessário para combater o narcotráfico. Chávez esteve prestes a declarar guerra ao convocar a população para “combates iminentes”, mas predominou a interlocução de Lula, na reunião da Unasul, evitando o confronto.

E A VIZINHA ARGENTINA?

Ainda às voltas com reflexos da crise institucional e econômica que resultou em moratória em 2002, os hermanos vivem uma dura realidade. O calote minou a confiança dos investidores internacionais, afastou empresas, revoltou credores, desvalorizou a moeda, gerou desemprego e níveis recordes de pobreza. Os governos de Nestor Kirchner e sua esposa e sucessora, Cristina, renegociaram dívidas e melhoraram indicadores, mas não o suficiente para diminuir as sombras que pairam sobre o horizonte argentino.

O governo continua adotando medidas polêmicas (como a estatização dos fundos de pensão), envolvendo-se em embates com produtores rurais e conglomerados econômicos, em especial o poderoso Grupo Clarín, de comunicação. O resultado, como previsto, é o descontentamento popular, fator determinante para a derrota governista nas urnas em junho. Maioria no Congresso Nacional desde 2003, os Kirchner vivem hoje a realidade de um novo Legislativo, no qual o Partido Justicialista (ou Peronista) não é predominante.

Tantos problemas internos reduziram a relevância do país no cenário internacional e revelam traços peculiares de sua cultura política. Condenada pelo peronismo, a Argentina segue dele dependente. No campo das relações externas, o casal Kirchner já deu mostras de má vontade em respaldar o protagonismo do Brasil – rivalidade aparentemente mal calculada, que deve contribuir ainda mais para o isolamento da Argentina. Segundo Pedro Dallari, já há outro ator em cena. “Quando resolver os problemas internos”, diz, “a Colômbia irá passar a Argentina.”

O BRASIL EM HONDURAS

Finalmente, cumpre pontuar a atuação do Brasil em Honduras, o mais relevante episódio em relação à diplomacia brasileira nos últimos anos. Eleito em 2005, o presidente Manuel Zelaya ambicionava alterar a Constituição, dentre outros motivos, para permitir a reeleição. Uma consulta popular foi agendada para o dia 28 de junho, pelas vias de um segundo decreto executivo – o primeiro, de mesmo teor, havia sido julgado inconstitucional dias antes. Seguindo o script latino-americano à risca, na data do plebiscito, soldados empunhando metralhadoras retiraram Zelaya e sua família do palácio presidencial, de pijamas, e os levaram num helicóptero para deportação imediata à Costa Rica. A justificativa da oposição e dos militares foi a de que Zelaya violara a Constituição e, portanto, deveria ser substituído por um governo interino até as novas eleições, em novembro. Mas, contradições como a falta de previsão constitucional para o impeachment e a destituição pelo Legislativo, quando a competência seria do Judiciário, puseram em xeque a legitimidade do processo.

O episódio se transformou numa crise internacional. A OEA condenou o evento como golpe militar e exigiu a imediata restituição do presidente eleito ao poder, sendo acompanhada pela maioria dos países da América Latina e do mundo, inclusive pelos Estados Unidos. Financiamentos e importações foram cancelados e a solução para o conflito parecia iminente.

Entretanto, os norte-americanos recuaram na decisão, causando um incidente diplomático sem precedentes com o Brasil, que não poupou críticas à política externa de Obama. A esta altura, o Brasil dava abrigo a Zelaya na embaixada em Tegucigalpa, numa tentativa de fazer o presidente eleito retornar a Honduras.

A participação do Brasil em Honduras suscita opiniões antagônicas. Para José Guilhon, “foi completamente equivocada. Não temos interesse na região, e partimos para uma intervenção completamente contrária à nossa tradição, incoerente com a forma como atuamos na América do Sul”, afirma. Pedro Dallari enxerga a questão de outra perspectiva: “Juridicamente, a posição brasileira foi consistente. O país não discordou do entendimento geral internacional. Afinal, receber Zelaya como asilado significaria negar sua condição política legítima”, explica. “A posição brasileira foi um fator de constrangimento para o governo golpista”, acredita.

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