Segredos da Coreia

setembro 27, 2010 at 1:38 am Deixe um comentário

O que o Brasil pode aprender com a bem sucedida internacionalização da economia coreana

Por Rafael Gregorio

(Publicado na revista Getulio, nº. 22)

Segredos da Coreia

Durante os anos 70 tornou-se popular nos meios econômicos o paralelo entre o Brasil e a Coreia. Naquele momento, alimentados por um estudo recém-divulgado pelo Banco Mundial sobre nações pobres e suas perspectivas, analistas realizaram amplos debates sobre o potencial de desenvolvimento dos dois países. As semelhanças eram mesmo inspiradoras. Ambos faziam parte do terceiro mundo, governados por militares, apresentavam indicadores econômicos e sociais parecidos e tinham pouca atuação no comércio internacional. Também em comum, ambições de inserção no mundo desenvolvido.

Passados quarenta anos, o Brasil segue uma promessa. Os benefícios do “milagre econômico” foram em grande parte consumidos pelas crises dos anos 80. E mesmo após a recente onda de crescimento que o recolocou no top 10 da economia, marcada pela ascensão social e expansão do crédito e do consumo, o país ainda sofre as mesmas carências: desigualdade, endividamento, dependência tecnológica, exportações de baixo valor, excessiva carga tributária sobre os setores produtivos, legislação autoral ultrapassada e alta taxa de juros.

Os coreanos, por sua vez, são atores de destaque no novo palco global. A excelência em setores como as indústrias de automóveis, eletrônicos, semicondutores e construção naval conduziu o país à 13ª economia mundial. A renda média quase quadruplicou, como aumentaram também a produção industrial e as exportações. Seus produtos chegam a todos os cantos do planeta e sua cultura se disseminou como uma febre na Ásia.

Em 2009, Brasil e Coreia comemoraram cinquenta anos de relações oficiais. No mesmo período, notabilizaram-se pela resistência à crise financeira mundial que derrubou mercados e ainda aflige referências como os Estados Unidos, Espanha e Japão. Somados a estes marcos, a proximidade da eleição presidencial e o recorrente debate sobre os rumos do país alimentam a antiga pergunta: quais os segredos do sucesso coreano e o que devemos aprender com ele?

Receita simples

O primeiro navio com imigrantes da Coreia chegou ao Brasil em 1963. Os mais de 50.000 coreanos que hoje residem no país, segundo a Polícia Federal e o Ministério do Trabalho, somam-se a 200 mil descendentes e compõem uma comunidade significativa. Em especial em São Paulo, onde nos últimos anos empresários instalaram fábricas e lojas em bairros como o Bom Retiro e o Brás, transformando cenários antes decadentes em prestigiados centros de consumo.

As relações comerciais se intensificaram. Segundo Soon Tae Kim, cônsul geral da República da Coreia em São Paulo, o Brasil é o maior parceiro na América Latina e os negócios chegaram a US$ 10 bilhões em 2008. O aumento pode ser observado na popularização de marcas como LG e Samsung, que em pouco tempo se tornaram rivais de consolidadas concorrentes japonesas e norte-americanas. Ele afirma que os investimentos devem aumentar: “A Hyundai prepara a instalação de uma montadora em Piracicaba, um projeto de mais de R$ 1 bilhão”. Recentemente, o Banco do Brasil e a Vale abriram escritórios em Seul.

O intercâmbio político também aumentou. Em 2008, o presidente Myung Bak Lee visitou o Brasil e sugeriu cooperação nas áreas de mineração, petróleo, construção naval, bioenergia e indústria verde automotiva. Em novembro, Lula deve retribuir a visita na cúpula do G20 em Seul. Mais uma oportunidade para conhecer de perto a fórmula do milagre.

“A Coreia é hoje a mística do desenvolvimento no Brasil”, afirma Yi Shing Tang, advogado e professor doutor de relações internacionais na USP. Para ele, os resultados do tigre asiático podem ser mensurados em uma comparação entre indicadores. As exportações, por exemplo, eram de US$ 1 bilhão para ambos países em 1962. Em 2007, a Coreia atingiu US$ 380 bilhões em vendas para o exterior e o Brasil chegou a US$ 160 bilhões. Somadas às importações, a participação dos coreanos no comércio internacional ultrapassa em três vezes a brasileira. Além disto, 33% das vendas daquele país são de produtos de alta tecnologia. Aqui este índice é de 14%. Mais da metade das exportações brasileiras são de matérias primas e produtos com pouco ou nenhum processamento como soja, café e minérios de ferro.

O PIB per capita coreano também evoluiu radicalmente. Em 1960, a renda individual era de US$ 79 e a brasileira de US$ 208. Em 1999, chegou a US$ 8.500 na Coreia, e no Brasil a US$ 4.500. Esta evolução chegou ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), indicador anual das Nações Unidas que mede a qualidade de vida. Na última edição em 2007, a República da Coreia ocupou o 26º lugar. O Brasil apareceu na 70ª colocação, atrás de países como Malásia, Líbia e Cuba.

Eun Yung Park é professora doutora de jornalismo econômico na ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP. Nasceu na Coreia e com um ano e meio veio para o Brasil com a família. Segundo ela, a receita do sucesso é simples: planejamento, educação, fortalecimento da indústria, independência tecnológica, responsabilidade com a dívida externa, patriotismo e senso coletivo. A eles somam-se a disciplina e o pragmatismo, dois traços emblemáticos do povo coreano.

Rebanho consciente

“O papel do Estado é o mesmo de um pastor de ovelhas”: esta frase do cônsul Soon Tae Kim explica um fundamento da cultura dos coreanos. Para eles, a ação dos governos é de grande importância, mas nunca maior do que a das pessoas. Neste sentido, talvez o primeiro e crucial gesto de pastoreio após o fim da Guerra da Coreia, em 1953, tenha sido explorar esta pró-atividade coletiva. A cidadania e os pequenos gestos foram guindados a ideologia oficial, sintetizados na expressão “Hong Ik In Gan”, que significa buscar um mundo mais justo por meio da iniciativa individual.

Este fator psicológico foi a base, nos anos 60, de um movimento chamado Saemaul Undong”, ou “novo bairro”. A ação obteve resultados como a melhora das condições de trabalho, a obsessiva limpeza de ruas e ambientes públicos e a otimização.

O professor Yi Shing Tang lembra que “para muitos, a reconstrução do pós-guerra contribuiu para o crescimento”. Ele completa: “Em todos os tigres asiáticos – Taiwan, Tailândia, Malásia, Cingapura – o sacrifício das vontades em nome da obediência ao líder levemente autoritário, porém virtuoso, é um fenômeno comum, com origem no confucionismo. Os resultados reforçam o sucesso da escolha”.

Soon Tae Kim vê no dinamismo do empresariado outro importante fator. O cônsul conta como nos anos 70 o presidente e fundador da Hyundai, Ju Yung Chung, visitou a Inglaterra a fim de captar recursos para o primeiro estaleiro que fabricaria navios na Coreia. Ele se preocupava, entretanto, por não possuir garantias para os empréstimos. Ao final, Chung voltou com o dinheiro e mais duas vultosas encomendas de empresários ingleses, convencidos pela ilustração de um navio-tartaruga na cédula de 500 wons: “excelência tecnológica” coreana do século XVI.

A jornalista Eun Yung cita outro exemplo do patriotismo: “Nos anos 70, o presidente foi buscar crédito na Alemanha, e o governo local negou. Mas na época havia muitos coreanos trabalhando por lá, enfermeiras e mineradores, e ofereceram seus salários. Esse simbolismo sensibilizou o governo alemão“. Ela continua: “Existe uma tradição de presentear com anéis de ouro. Quando houve a crise asiática, muitos doaram seus anéis nos bancos para ajudar o país”.

A diplomacia mantém um interessante programa de repatriação de filhos e netos de coreanos imigrantes. A professora Eun Yung, que na década de 80 aceitou o convite e passou quatro anos e meio em Seul realizando seu mestrado, explica que “este tipo de iniciativa é importante para conhecer as raízes e combater estereótipos”. No Brasil, ela enxerga uma demanda por conscientização: “Existe aqui uma cultura de crescimento pessoal a todo custo, capas de revistas sobre o milionário que mora ao lado. É preciso ser milionário?”. Ela adiciona que “estes aspectos de psicologia coletiva influenciam as novas gerações. Falta a base e pode levar décadas para que a educação faça nascer novos valores”.

Planejar a longo prazo

Os governos coreanos também acertaram em cheio ao recusar saídas rápidas. Em um claro contraste com o Brasil, onde a sucessão política usualmente significa o abandono de projetos e mudança de rumos visando dividendos eleitorais, na Coreia as demandas foram diagnosticadas, hierarquizadas e solucionadas como parte de um longo e paciente plano.

Eun Yung explica que o processo coreano iniciou com a reforma agrária dos anos 50 e nos programas de educação fundamental. Como o Brasil, na época o país exportava matérias-primas. Já na década de 60, o presidente Park Chung-hee instituiu planos quinquenais para a construção das indústrias com empréstimos do exterior, visando na fase seguinte a substituição de importações. Até aí, nada novo.

Entretanto, a partir da metade da década de 60, enquanto o Brasil seguia na política de substituição, a Coreia evoluía para a exportação de manufaturados. Além disso, a ditadura coreana ampliou investimentos na universidade e capacitou sua força de trabalho para a fase seguinte, a dos anos 70, quando o foco passou a ser a exportação de produtos com alto valor agregado. E os setores de conhecimento tecnológico receberam estímulo e prosperaram.

Para a professora Eun Yun, o Brasil parou nas fases anteriores. Sem políticas eficientes de estímulo ao empresariado desbravador, assistiu à chegada de multinacionais estrangeiras para desempenhar este papel. Yi Shing adiciona que a corrupção e a ausência de foco dos investimentos em educação dificultam a aplicação deste modelo: “Há grandes somas financeiras, mas para linhas de pesquisa que não têm a ver com inovação”.

O recurso natural

Na Coreia, segundo Eun Yung Park, os recursos foram utilizados para implementar o parque industrial e financiar os planos quinquenais, em contraste com o Brasil, onde governos fizeram dívida para apagar incêndios de fracassos econômicos ou suportar políticas cambiais. E se por um lado os débitos coreanos cresceram, atingindo US$ 380 bilhões contra US$ 263 bilhões brasileiros em 2009 segundo o Ministério das Relações Exteriores e o Banco Central, por outro lado foram e são mais bem aplicados. Ela acrescenta: “A Coreia abriu o mercado para uma troca”.

O cônsul Soon Tae Kim aponta que diante das limitações físicas do país, com poucos recursos naturais, ele e seus antepassados fizeram desse fatalismo uma solução: “Nosso recurso natural são as pessoas”. De fato, a formação do capital humano parece ser o elemento mais importante desta ascensão, e pode ser medida nos dados do Banco Mundial. Em 1953, os não-alfabetizados na Coreia totalizavam 80% da população, enquanto no Brasil eram 50%. Em 2007, 10% dos brasileiros seguiam sem ler ou escrever. Os asiáticos reduziram seu índice a zero em 1999.

O nível de matrículas universitárias na Coreia evoluiu de 15% em 1978 para 80% em 2008, enquanto no Brasil subiu de 10% para 20%. No mesmo período, os investimentos em ciência e tecnologia, que eram de 0,5% do PIB coreano e 0,4% do brasileiro, chegaram respectivamente a 3% e 1%. Entre 1980 e 2000, as publicações científicas saltaram para 15.000 na Coreia, enquanto no Brasil foram para 10.000. No mesmo período, a outorga de patentes coreanas nos EUA subiu de 100 para 3.500, contra 300 brasileiras.

A obsessão com a educação tem exemplos caricatos. Em 1963, naquele primeiro navio que vinha para o Brasil, Soon Tae Kim lembra que “as crianças tiveram a bordo aulas de matemática e português”. Eun Yung reforça a relação entre educação e desenvolvimento e faz sugestões: “Combater a desigualdade social, desonerar a iniciativa privada, cobrar do Estado que seja modelo para a consciência coletiva e investir em temas de excelência, como os biocombustíveis”.

O potencial olímpico

A relação da Coreia com o mundo parece mais equilibrada e recíproca que a do Brasil. Eun Yung e Yi Shing concordam que a explicação passa pelo patrocínio do governo aos chaebols, grandes conglomerados nascidos de empresas familiares que atuam em diversos setores estratégicos e competem globalmente. Graças a eles, enquanto o Brasil patinou para equilibrar sua balança comercial, a Coreia aumentou em passos largos a participação no comércio mundial. No Brasil, Yi Shing Tang diz que “há muita resistência na sociedade à idéia de que a iniciativa privada se aproprie do conhecimento que a universidade pública produz”. E adiciona: “É essencial que o país esclareça sua postura a respeito da proteção aos direitos de propriedade física e intelectual”. Eun Yung vê a abertura de mercado ainda incompleta no Brasil e ressalta outra peculiaridade: “Os coreanos consideram a dívida como patrimônio”. As empresas do país trabalham com endividamentos na ordem de 200% sobre o capital social, algo impensável para a realidade brasileira.

Muito se pergunta sobre a importância dos organismos diplomáticos coreanos, baseados em um sistema de especialistas regionais. Antes de ser cônsul no Brasil, Soon Tae Kim estudou economia, língua portuguesa e relações internacionais em Seul, Lisboa e Brasília. Os cuidados chegariam a extremos como treinamentos em associação com o Banco Central coreano nos quais empresários e executivos aprendem a reconhecer o hino nacional dos países onde se instalam.

Para Yi Shing, porém, a iniciativa privada é uma vez mais preponderante: “Não acho que o consulado coreano no Brasil dê mais suporte do que os consulados brasileiros dão, que é grande. Associações privadas e entidades comerciais têm orientações melhores sobre riscos, enquanto consulados geralmente têm um viés político”.

Há dois bons exemplos deste tipo de apoio. A Kotra, abreviação para Korea Trade-Investment Promotion Agency, uma associação fundada em 1962 e presente em mais de 70 países, inclusive o Brasil, cujas atribuições incluem promover a aproximação entre as empresas coreanas e o mercado consumidor local e dar assessoria jurídica. Com funções semelhantes, a Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Coreia assessora principalmente médios e microempresários.

A aproximação da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 no Brasil levanta questionamentos. Para Eun Yung, “eventos como este podem ajudar na construção do mapa imaginário das pessoas”. A professora acrescenta que o Brasil terá ótimas oportunidades para combater estereótipos, porém deixa um alerta: a lição de casa é urgente. “Antes de mostrar sua imagem, a Coreia passou por décadas de evolução neste sentido”. Na mesma linha, Yi Shing afirma que “estes eventos geralmente são utilizados para expor que um país saltou de um estágio para outro. Acho que o Brasil está tentando mostrar uma evolução que ainda não aconteceu de fato”. Ele finaliza com uma ressalva crucial: “a Coreia conseguiu promover Olimpíadas e Copa do Mundo sem um gasto desproporcional de dinheiro público. O Brasil irá conseguir fazer isto?”

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