O Direito Penal Humanizado

janeiro 3, 2011 at 11:52 am 1 comentário

Por que as lições do grande Nelson Hungria não devem ser esquecidas

Por_Rafael Gregorio (Publicado na revista Diálogos & Debates, nº 39)

DD39 – O Direito Penal Humanizado (download)

Talvez seja difícil para um jovem jurista compreender a magnitude daqueles que hoje chamamos de clássicos. No campo do direito nacional, fala-se em um time seleto. Seja qual for sua escalação, dele será presença obrigatória Nelson Hungria. Pois o “Príncipe do Direito Penal” é ainda uma das maiores referências na área. A ele se creditam contribuições essenciais ao sistema penal e lições humanistas além da técnica.

Um contraste valioso

Hoje muito se diz sobre a redução do direito às repetições e roteiros. Como em caricaturas fabris do cinema mudo, pensa-se pouco. As paixões, limitações e fúrias do homem comum perderam espaço para manuais e sinopses indiferentes. E, se os grandes mestres sacavam como que da lapela Aristóteles, Hobbes ou Rousseau, os técnicos quando muito mencionam gurus da autoajuda jurídica, sucessos de marketing pessoal.

Mas ainda é tempo de corrigir o erro, conhecer a produção de Hungria e permitir-se o potencial encantamento. Na definição de Miguel Reale Júnior, advogado, professor da USP, ex-ministro da Justiça e membro da comissão que revisou o Código Penal em 1984, trata-se de “um homem de elevada cultura, que conhecia a natureza humana de forma perspicaz”.

Nelson Hungria Hoffbauer nasceu em 16 de maio de 1891, na pequena cidade de Além Paraíba, em Minas Gerais. Diz-se que era sobrinho-neto de São Clemente Maria, arcebispo de Viena no século XVIII, notório por desafiar Napoleão. Talvez o santo explique o talento para a oratória do menino que, aos 13 anos, já se aventurava em exames de admissão da faculdade de Direito local.

Após concluir os estudos primários, mudou-se para o Rio de Janeiro. Ali se graduou, em 1909, na Faculdade Nacional de Direito da hoje UFRJ. Pouco depois atingiu a docência e iniciou uma carreira gloriosa e versátil. Descrito como um sujeito alto, magricela e propenso à polêmica, Hungria começou como Promotor Público em seu estado natal. Ocupou o cargo por nove anos e, nesse período, aprendeu sozinho seis idiomas.

No antigo Distrito Federal, durou apenas oito meses no cargo de Delegado de Polícia – não admitia a obtenção de confissões sob tortura. Em 1924, ingressou na Magistratura como Juiz Criminal. Atuou também em Varas da Família e da Fazenda Pública.

Tornou-se Desembargador em 1944 e Ministro do Supremo Tribunal Federal em 1951, indicado por Getúlio Vargas. Paralelamente, fez parte do recém-restabelecido Tribunal Superior Eleitoral. Após a aposentadoria, em 1961, preferiu a advocacia, destacando-se na resistência à repressão do regime militar. Casado com Isabel Maria Machado Hungria Hoffbauer, o jurista faleceu no Rio de Janeiro, em 26 de março de 1969.

Nelson Hungria participou da elaboração de legislações importantes como o Código de Processo Penal – atualmente em vias de reformulação –, a Lei das Contravenções e a Lei de Economia Popular. Sua notoriedade, porém, se deve ao destaque na comissão revisora do Código Penal de 1940 e às históricas discussões que se seguiram.

Busca por identidade Nacional

Especialistas identificam nas Constituições de 1824 e 1891 os germes de uma tradição liberal e republicana no país. Influências do iluminismo, as garantias individuais foram reiteradas pelas legislações e governos seguintes. A partir da metade da década de 1920, porém, o mundo viu a ascensão de regimes políticos totalitários, em especial na Europa, com o nazismo alemão e o comunismo soviético.

Os efeitos sobre o direito penal foram impactantes. “É o ramo mais associado ao liberalismo, então démodé, porque contempla mais que qualquer outra ciência a proteção à pessoa”, explica o pesquisador e professor Rafael Mafei Rabelo Queiroz, da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

Doutrina e jurisprudência abraçaram as novidades. “Os ideais de garantias individuais”, diz Queiroz, “passaram a ser vistos como obstáculos à ordem, velharias da Revolução Francesa.”

Frutos desse endurecimento, a escola Positivista e a Técnico-Jurídica surgiram no final do século XIX. A primeira rezava a observação e o determinismo em detrimento da mera racionalidade. Seu maior expoente foi o italiano Cesar Lombroso, que defendia a existência de um biótipo criminoso. A segunda, uma reação ao positivismo, teve como ícone o também italiano Arturo Rocco, e pregava a restauração da objetividade, afastando do direito penal a filosofia e outras ciências.

Nesse contexto, já em 1928 surgiram movimentos de revisão das leis penais no Brasil. Naquele ano, o jurista Virgílio de Sá Pereira iniciou um trabalho, interrompido pela chegada do Governo Provisório em 1930. Em seguida, Getúlio Vargas incumbiu o mesmo autor de formar uma comissão revisora. Dessa segunda iniciativa nasceu, em 1935, o Projeto nº 118A.

Em 1938 o ministro da Justiça, Francisco Campos, solicitou uma outra revisão. Dessa vez, o escolhido foi José D’Oliveira Alcântara Machado. Professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e simpatizante das concepções positivistas, o jurista preferiu desconsiderar as bases do trabalho anterior, não obstante o amplo debate que já se produzira.

Para Rafael Queiroz, “Alcântara Machado pretendeu aplicar amplamente no Brasil as medidas de segurança contra indivíduos perigosos, uma das novidades do direito penal pós-liberal. Seu caráter assecuratório, mais do que punitivo, permitia que escapasse às limitações clássicas impostas às penas”. O projeto de Código Criminal Brasileiro de Alcantara Machado, segundo Queiroz, atendia à crescente demanda repressiva estatal.

Posteriormente, Vargas designou uma nova comissão revisora. Dela fazia parte Nelson Hungria, já naquele momento uma referência. Seu brilhantismo acabou lhe conferindo liderança, colaborações decisivas e o mérito pela autoria, no imaginário popular.

Os embates com Alcântara Machado

A revisão não passou ilesa. Machado se revoltou com a edição do “seu” Código e, em 1941, buscou incitar debates publicando suas opiniões em um artigo na revista O Direito. Foi, entretanto, amplamente ignorado.

Questionados, os membros da comissão revisora se esquivaram, à exceção de Hungria. Réplicas e tréplicas se seguiram, todas posteriormente publicadas. E são documentos essenciais para a compreensão das raízes que ainda hoje sustentam nosso ordenamento.

As críticas compreendiam praticamente todo o projeto. Desde a nomenclatura (criminal versus penal), passando pela caracterização da omissão sem necessidade de vínculo subjetivo, pela co-autoria em crime culposo – inadmissível para Hungria – e pelas definições do criminoso por tendência, chegando à organização e falhas de redação.

Contudo, o que mais incomodava Hungria era o enfraquecimento dos princípios da legalidade e da anterioridade, essenciais do liberal-iluminismo. Em sua visão, adotávamos modismos inadequados: “Ainda não nos corrigimos da balda de ter acessos de tosse quando o Velho Mundo apanha a coqueluche”, escreveu.

Amor e ódio

Na realidade, o antagonismo com Alcântara Machado não era tão radical. Segundo Rafael Queiroz, “numa visão liberal clássica, o direito penal é residual. Hungria, pelo contrário, defendia algum intervencionismo, mas questionava seus excessos”. Exemplos do intervencionismo aceitos por Hungria seriam a criminalização da greve e do lock-out (paralisação do empregador), bem como os crimes contra a economia popular.

Reale também refuta a polaridade ideológica: “As divergências eram técnicas e pontuais”. Continua: “Eu diria que Hungria estabeleceu diferenciações importantes com o Código italiano e, assim, depurou a influência da escola positivista”.

Para ilustrar sua opinião, Reale remonta a casos concretos. “Hungria entendia que não se devia regulamentar a omissão, apenas a ação. E neste caso, não tinha razão. Foi necessária muita doutrina e jurisprudência para suprir esta ausência.”

“Por outro lado”, continua, “Machado dispunha sobre o criminoso por tendência, influência italiana que Hungria retirou. E nisso fez bem.”

Recusa à teoria asséptica

Perguntado sobre a passagem mais marcante do mestre, Reale não hesitou: “Certamente um adendo aos Comentários, chamado Os pandectistas do Direito Penal”. Originalmente um discurso pronunciado na Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais em 1949, esse texto é uma crítica à escola Técnico-Jurídica.

É fácil entender por que Reale o considera especial. No início da carreira, o autor fora um defensor daquelas ideias. Relega, assim, um interessante mea-culpa. Além disso, Hungria é um poeta. Sua produção técnica beira a sensibilidade literária. Que o diga por si: “A mais humana das disciplinas jurídicas cada vez mais se afasta da realidade social para encantoar-se no ‘jurismo puro’, nesse narcisismo que se convencionou chamar ‘positivismo jurídico’. Já não mais se reconhece aquele direito aquecido do calor da alma humana do edificante século XIX. Consomem-se camadas de tinta para demonstrar a diferença entre ‘ação’ e ‘fato’, ‘fato’ e ‘evento’, ‘vontade’ e ‘desejo’. Onde havia labaredas vivas e crepitantes, hoje só existem chamas indecisas de fogo-fátuo”.

Em suas reflexões, Hungria estabelece um diálogo de extrema atualidade. Mais à frente, denuncia o empréstimo inadequado da dogmática civil, para ele incapaz de compreender crimes e criminosos. Chega a ser prazerosamente difícil escolher citações: “Quase se poderia dizer que aconteceu com o direito penal o mesmo que aconteceu com aquela mosca de Machado de Assis: o poleá, que a achou, quis decifrar o mistério do seu esplendor e ‘dissecou-a a tal ponto, e com tal arte, que ela rota, baça, nojenta, vil, sucumbiu…’”

Nobreza e referência

Em outro artigo intitulado “Sobre a Pena de Morte”, o mestre critica rebaixar as leis à barbárie, e adiciona faltarem evidências de que a medida [da pena de morte] reduza a criminalidade. Para ele, o trabalho dos condenados seria uma opção mais efetiva, por ressarcir o dano e manter o sustento da família do preso, evitando a carência social.

Na conclusão, Hungria defende a aplicação de medidas de segurança aos incorrigíveis, e se aproxima de seu suposto desafeto Alcântara Machado. Uma recorrente recusa ao ego em nome da excelência do pensamento.

Em outros adendos, tratou de temas controversos, como o asilo político, o genocídio e o uso de anticoncepcionais, defendido sob a ótica da liberdade feminina e do controle de natalidade malthusiano. Falou também da legítima defesa putativa e da então Nova Lei de Imprensa (Lei 2.083/53), cuja inconveniência igualou à da “visita em festa de batizado sem convite”.

Para Rafael Queiroz, o prestígio de seus comentários permite compará-lo aos jurisconsultos da Idade Média, cujas doutrinas eram tratadas como fontes do direito: “Era chamado de príncipe porque tinha autoridade, já que sua doutrina tinha ares de interpretação autêntica do Código Penal. Ainda hoje é utilizado como nenhum outro penalista da época”.

A ciência do razoável

Em 1951, Hungria foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, o ápice de uma trajetória então já consagrada. Anos antes, em discurso de posse do cargo de desembargador, fez interessantes apontamentos sobre a missão do magistrado:

“Ao juiz não se faz mister inteligência privilegiada ou farta cultura. O que lhe é necessário, antes de tudo, é ponderação. O magistrado erudito, mas sem um sólido bom senso, é piano desafinado. Percorrer extensa bibliografia muitas vezes redunda em perder de vista o caso concreto. Da mesma tribo é o juiz fetichista da jurisprudência, impessoal como o empregado de aduana ao classificar mercadorias. Serei no Tribunal de Apelação o que sempre fui: um juiz que, antes de consultar manuais ou revistas, aconselha-se com a própria consciência”.

Em diversos episódios essas palavras foram postas em prática. Num deles, atribui-se a Nelson Hungria a posse de Juscelino Kubitschek.

Após a morte de Vargas, em 1954, o governo passou interinamente ao presidente do Senado, Nereu Ramos, eleito pelo Congresso em novembro até a posse do novo presidente em 31 de janeiro seguinte. Entretanto, o vice Café Filho pleiteava a sucessão, com o apoio de parte dos militares.

No julgamento do mandado de segurança de Café Filho, em 14 de dezembro, Hungria decidiu pela manutenção do senador Nereu Ramos no poder. Esta era a melhor maneira de garantir que o presidente eleito tomaria posse no dia marcado, justificou-se o mestre, para aplausos dos presentes e referendo dos colegas.

Código Penal de 1969

Hungria aposentou-se do STF em 1961. No mesmo ano, o então presidente Jânio Quadros solicitou-lhe a elaboração de uma nova legislação penal. O projeto, entregue em 1962, foi submetido às revisões de grandes nomes, como Roberto Lira e Heleno Fragoso. Porém, a despeito dos esforços, sua conversão em lei demorou mais sete anos.

Hungria manteve a estrutura do Código de 1940, com uma parte geral e outra especial. Eliminou defeitos notórios e apresentou inovações. Dentre elas, a adoção do sistema vicariante, que veta a cumulação de medidas de segurança com penas, a punibilidade independente no concurso de agentes, o perdão judicial e novos crimes como o furto de uso e o exercício ilegal da advocacia.

Finalmente, propôs elevar o teto da reclusão de trinta para quarenta anos, aumentar as penas em certos delitos e punir o menor entre 16 e 18 anos capaz de compreender seus atos.

A potencial redução da maioridade foi alvo de severas críticas. Finalmente convertido em lei em outubro de 1969, meses após o falecimento de Hungria, o texto sofreu diversas mutilações e, ao final, foi revogado sem jamais ter entrado em vigor.

Ainda assim, alguns pormenores chamam a atenção. O jurista Damásio de Jesus afirma em um ensaio que durante os trabalhos da comissão revisora, Hungria “várias vezes surpreendeu seus pares aceitando teses contrárias ao pensamento exposto em suas obras”. Além da predileção tardia pelas medidas de segurança, a tendência de autorrevisão se confirmou no tema de concurso de pessoas no crime de infanticídio. Baseado nas regras de incomunicabilidade, o mestre afirmou por décadas que o crime só poderia ser praticado pela mãe. Na última edição de seus Comentários ao Código Penal, Hungria surpreendentemente modificou suas anotações a respeito e reconheceu o engano.

As aparentes contradições talvez se expliquem pela mesma caótica subjetividade que tão fervorosamente defendeu como origem e destino do direito penal. Um exercício de humildade e, nas palavras de Heleno Fragoso, “exemplo de fidelidade à cultura jurídica”.

Liberdades individuais e resistência civil

Paralelamente à confecção do novo Código, Hungria voltou-se para a advocacia. Nesse período, tomou parte em um episódio marcante de resistência contra o regime militar.

Em 1969, Carlos Heitor Cony foi processado por artigos considerados caluniosos pelos golpistas. Entretanto, em vez da Lei de Imprensa, que previa detenção e benefícios como sursis e fiança, por iniciativa do general Costa e Silva o jornalista foi submetido aos rigores da Lei de Segurança Nacional, com penas de reclusão de até três anos e nenhuma garantia processual.

Nelson Hungria faleceu naquele mesmo ano, e há quem identifique no desgosto com a brutalidade que tomara o país uma contribuição decisiva. Porém, antes de partir, o mestre nos presenteou um estandarte de esperança e coragem: ofereceu-se para defender Cony em habeas corpus junto ao STF.

Gigante em suas convicções, Hungria provou uma vez mais o poder do bom direito.  Em pouco mais de uma página, salvou o jornalista, garantiu a aplicação da justiça e venceu a barbárie.

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1 Comentário Add your own

  • 1. Jorge Candido S. C. Viana  |  janeiro 7, 2011 às 2:22 pm

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