Vida que Segue

novembro 11, 2010 at 10:00 am 1 comentário

Um panorama dos transplantes de órgãos no Brasil e das perspectivas da ciência e do direito

Por_Rafael Gregorio (Publicado na revista Diálogos & Debates, nº 39)

DD39 – Vida que Segue (download)

Ler e escrever e-mails com as letras em tamanho normal é um dos grandes prazeres de Maria Bergamasco, 29 anos, advogada em Cuiabá. A aparente trivialidade esconde uma vitória pessoal: em agosto de 2008, Maria passou a ter dificuldades para ler e escrever. Diversos oftalmologistas confirmaram o diagnóstico assustador: seus olhos sofriam de uma doença degenerativa, o ceratocone, que distrofia a córnea e prejudica seriamente a visão. A enfermidade evoluiu em poucos meses para um quadro severo e a teria levado praticamente à cegueira não fosse um bem-sucedido transplante de córnea.

Histórias como a de Maria Bergamasco são cada vez mais frequentes. Em 2009, mais de 20 mil pessoas se submeteram a transplantes de órgãos no Brasil, em sua maioria financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo o médico Ben-Hur Ferraz Neto, cirurgião do Hospital Israelita Albert Einstein e especialista em transplantes, os indicadores situam o país no segundo lugar em número absoluto de cirurgias desse tipo no mundo.

Ben-Hur Ferraz Neto é presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, a ABTO, composta por profissionais da área médica. Entre as finalidades da associação estão estimular o desenvolvimento técnico e jurídico, sugerir melhorias aos centros de doação e bancos de órgãos e conscientizar a comunidade científica. A ABTO também se notabilizou por campanhas junto à população sobre a morte cerebral e a importância da solidariedade.

Esse tema demanda estreita conexão entre a medicina e o direito. Para Cláudio Antonio Soares Levada, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, mestre e doutor em direito civil e professor de pós-graduação da PUC-SP, os transplantes são manifestações diretas do direito à vida e refletem nossas relações com a religião, a moral e a filosofia.

A crescente demanda vem sendo amenizada por inovações técnicas e nos sistemas de coleta. Por outro lado, exigem atualização dos juristas, provocados por questões até pouco tempo impensáveis. Outros pontos da maior relevância gravitam em torno da discussão. Dentre eles, a cobertura dos planos de saúde, a responsabilidade dos médicos, a infraestrutura do país e a regulamentação dos governos. Componentes de um grande mosaico daquela que é quase sempre a última chance.

O TRANSPLANTE

Na definição da ABTO, o transplante é um procedimento cirúrgico destinado a substituir um órgão ou tecido de um doente, que é o receptor, pelo correspondente saudável de um doador, morto ou vivo. Por envolver riscos inevitáveis, a conscientização do paciente é crucial. Para Cláudio Levada, “não é um momento para sutilezas e eufemismos. É preferível a hipérbole”.

Ainda assim, poucos desistem da operação. Difícil determinar seu significado para doentes renais presos a centros de hemodiálise, diabéticos, cardíacos incapazes das menores caminhadas ou pessoas que perderam a visão. A experiência de Kátia de Oliveira, analista de suporte, paulistana de 25 anos que também recebeu córneas em transplante, é ilustrativa: “Na fila, a sensação era de ansiedade e de medo. Hoje agradeço a Deus até por ver as nuvens”.

DOADORES VIVOS OU FALECIDOS

Os transplantes podem ser realizados com órgãos de doadores vivos ou falecidos. Estes são os mais recorrentes, vítimas de acidentes ou infecções com morte cerebral, definida pela medicina como a falência das células do encéfalo. As atribuições da região incluem o controle de funções essenciais como a respiração, a temperatura e a pressão.

Após a morte cerebral, a parada cardíaca é inevitável, podendo ser apenas adiada por equipamentos. O funcionamento do coração é um item da maior importância, pois o sucesso do transplante está diretamente ligado à irrigação sanguínea. Hoje podem ser transplantados coração, pulmão, fígado, rins, pâncreas, córneas, medula óssea, ossos e pele, além de tecidos internos como veias, artérias e válvulas cardíacas. Segundo o Dr. Ben-Hur Ferraz Neto, em breve devem integrar esse rol os transplantes de intestino. Em todos os casos, a compatibilidade e a manutenção são essenciais.

O tempo máximo para retirada e preservação varia, dependendo do tipo de intervenção. Segundo os manuais da ABTO, à exceção dos ossos, córneas e rins, todos os órgãos devem ser extraídos antes que o coração pare de bater. Após a remoção, podem ser preservados por intervalos que variam entre seis horas (coração e pulmão), um dia (fígado, pâncreas e rins), uma semana (córneas) e até cinco anos (ossos).

EVOLUÇÃO PROMISSORA

Os transplantes de órgãos de falecidos surgiram no início do século XX, mas só a partir de 1950 a medicina começou a superar a rejeição. As primeiras operações entre vivos datam dessa mesma época, mas se tornaram viáveis décadas depois. Essa possibilidade aumentou as chances de quem aguarda na fila por órgãos duplos, como os rins, e por aqueles capazes de regeneração. A partir da década de 1980, novas técnicas permitiram utilizar partes como enxertos. É o caso da medula óssea, do fígado, do pâncreas e do pulmão.

A doação intervivos obedece a critérios médicos e legais. Aqueles dizem respeito à compatibilidade, à inexistência de doenças e principalmente à sobrevivência. No plano jurídico, exigem-se maioridade, capacidade, vontade e parentesco até quarto grau ou conjugal, além da razoabilidade do risco. A doação por amigos ou parentes distantes requer autorização judicial e parecer do Ministério Público. Cláudio Levada aponta nessa modalidade uma excepcional relativização jurídica: “Os direitos à saúde e à integridade não são absolutos. Podem ser dispostos em certas circunstâncias, como em alguns esportes: automobilismo, boxe, paraquedas. Existe um risco razoável a que todos podemos nos submeter”, assinala.

Superados os obstáculos iniciais, vem o delicado momento pós-operatório. Os possíveis percalços incluem a rejeição, presente em aproximadamente 10% dos casos, e também a durabilidade do órgão no receptor, que até pouco tempo acreditava-se não superar quinze anos, uma presunção felizmente questionada por casos de convivência há décadas com órgãos transplantados.

As perspectivas da ciência são promissoras. Experiências com células-tronco e mais recentemente com as chamadas células vivas sintéticas prometem ampliar a oferta. Os avanços, entretanto, demandam a atenção de legisladores e juristas.

TRANSPLANTE E DIREITO

A matéria dos transplantes de órgãos rege-se no Brasil pela combinação entre Constituição Federal, Código de Ética Médica e Lei 9.434 de 1997, alterada em partes pela Lei 10.211/01. Cláudio Levada aponta como fundamentos o direito à vida e a autodisponibilidade sobre a integridade física e psíquica. Destaca também a proibição à mercantilização, como em anúncios de venda de órgãos em jornais, ao encontro do objetivo constitucional de construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Ele adiciona que a lei proíbe a veiculação de apelos por doação de órgãos ou por arrecadação de fundos em benefício de pessoa determinada.

Outro aspecto importante remete à presunção de que somos todos doadores, iniciada em 1997 e derrubada em 2001, quando a nova legislação condicionou a retirada à autorização da família do falecido. Para o desembargador, essa não foi uma boa mudança: “Antes, qualquer um de nós podia escolher ser doador, inscrevendo isso no documento de identidade”. E conclui: “A nova lei fortaleceu muito a opinião do familiar e causou um prejuízo social”.

COBERTURA DOS PLANOS DE SAÚDE

Um dos aspectos mais conturbados no âmbito jurídico diz respeito à possibilidade de os planos de saúde excluírem os transplantes da abrangência da cobertura. Entram no debate a pré-existência, as regras do direito do consumidor e o confronto entre os interesses do segurado (à saúde) e os da empresa (ao lucro). Os planos submetem-se à Lei 9.656/98, condicionada às disposições da Agência Nacional de Saúde (ANS), que desde então elabora e atualiza um Regulamento Técnico definindo critérios e itens obrigatórios.

Nesse sentido, nos planos anteriores à vigência da lei em janeiro de 1999, valem as disposições contratuais. Para os novos, é obrigatória a cobertura aos transplantes de rim e córneas, incluindo eventuais despesas com doadores vivos, medicamentos e acompanhamento pós-operatório, além de gastos com captação e transporte dos órgãos. Nos demais, o ressarcimento é facultativo e depende do contrato. No início de 2010 a ANS divulgou atualização estendendo a obrigação aos transplantes de medula óssea, válida a partir de 1º de junho.

Nos casos de cobertura facultativa, o desembargador Levada assinala que a jurisprudência tem sido favorável ao segurado, vulnerável sob a ótica das relações de consumo, o que ele considera razoável, pois “não se pode exigir a perda da vida”. Entretanto, o professor enxerga uma zona nebulosa de situações que dependerão do caso concreto, podendo haver problemas caso a exclusão tenha sido acordada pelas partes. O desembargador adiciona outro elemento: “A emergência, nos termos da lei, deve ser sempre coberta. Não é comum, mas o transplante pode ser necessário nessa situação, como em acidentes. Negar a cobertura significará a morte”.

ÉTICA PROFISSIONAL E RESPONSABILIDADE CIVIL

Outro ponto controverso é o da responsabilidade dos profissionais. Como salienta Silvio Venosa na obra Responsabilidade Civil, a relação entre médico e paciente se sujeita ao direito do consumidor e a obrigação que aquele assume, salvo exceções, é de meio e não de resultado. Em outras palavras, o cirurgião se obriga a empregar todos os meios na tentativa de cura, mas não pode garanti-la. Por outro lado, a lei civil resguarda ao paciente a autonomia para escolher ou não pela intervenção.

Para Cláudio Levada, “o importante é informar o paciente sobre o risco”. Caso algo dê errado, ele diz, “a culpabilidade vai se determinar pela qualidade dessa informação”. Além disso, o jurista ressalta a necessidade de diferentes análises para profissionais com diferentes recursos: “Não existe obrigação de curar, mas sim de usar todos os meios ao alcance. Uma presunção relativa, que depende do contexto. Não podemos igualar as condições de um médico no interior do Acre às de outro em um hospital de ponta”.

Assim, tornou-se recorrente a figura do termo de compromisso, documento no qual o paciente ou um de seus familiares formaliza conhecer os riscos e desejar enfrentá-los. Levada assinala que, na prática, os grandes grupos de medicina empresarial saem na frente, pois dispõem de orientação e modelos para resguardar os médicos. O desembargador alerta para a carência dos profissionais liberais, opinião corroborada pelo Dr. Ben-Hur, embasado pela experiência à frente da ABTO e das salas de operação: “Os médicos têm dificuldades para lidar com questões jurídicas”.

O assunto demanda também delicadas reflexões morais, como no exemplo citado por Levada: “O transplante de medula gera situações hollywoodianas em que casais têm um filho a mais apenas na esperança de que venha a apresentar compatibilidade para salvar um irmão. É correto gerar um ser humano com essa finalidade? Se você é o pai ou a mãe, vai dizer que sim. Mas e o gerado, qual sua opinião?”

A REALIDADE BRASILEIRA

Segundo os dados oficiais do Sistema Nacional de Transplantes, vinculado ao Ministério da Saúde, em 2009 foram realizadas aproximadamente 20.000 cirurgias deste tipo no país, incluindo os casos de córneas e excetuados os de ossos e outros tecidos. A ABTO, que mantém um Registro Nacional de Transplantes abastecido por informações das equipes médicas, tem estimativa bastante similar.

Os números empolgam, mas escondem distorções como a prevalência dos transplantes de córneas, que respondem por 60% do total, e principalmente as diferenças entre Estados e regiões. São Paulo, por exemplo, realizou quase metade das operações, o que na opinião de Ben-Hur se deve aos investimentos e programas de governo. Além disso, o número de intervenções é insuficiente para atender à demanda. Segundo a ABTO e o Ministério da Saúde, atualmente pouco mais de 63.000 pessoas aguardam nas filas das Centrais Nacionais de Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO).

Presentes em 25 Estados, as CNCDOs são responsáveis por cadastrar os receptores e gerenciar a espera, de acordo com a oferta e os critérios de distribuição. A inscrição se dá pela comunicação do médico, do hospital ou da equipe de hemodiálise ao CNCDO da região em que é atendido o doente. A distribuição, por sua vez, segue critérios gerais e específicos como compatibilidade, faixa etária, condições de saúde e níveis de atividade fisiológica.

A ausência de uma fila única nacional e de um sistema unificado é apontada como a maior causa das discrepâncias. Para Ben-Hur, “Há locais onde a logística se profissionalizou, como São Paulo e Santa Catarina, e outros, principalmente nas Regiões Norte e Centro-Oeste, onde passam-se meses sem que seja identificado um único doador”.

Outra questão importante diz respeito à possibilidade de transferência de uma fila para outra, como no caso de Maria Bergamasco, que após se inscrever no Banco de Olhos de Sorocaba foi atendida em cinco meses. Na CNCDO do Mato Grosso a espera seria de no mínimo dois anos, e esse tempo pode ser ainda maior dependendo do órgão e da região. A situação beira o colapso em Estados como o Rio de Janeiro e a Bahia, com grandes populações e sistemas de captação precários.

Ainda assim, nos últimos anos houve sinais de melhora. A criação dos Bancos de Olhos, por exemplo, vem reduzindo drasticamente o tempo de espera. O caso de São Paulo é ilustrativo: em 2005, Kátia de Oliveira esperou por dez meses para receber seu transplante. Em 2009, Maria Bergamasco esperou metade do tempo e, no começo de 2010, o estado atingiu uma marca histórica ao zerar a fila. Chegou até a enviar córneas para outros Estados. Digno de nota também que 92% dessas intervenções tenham sido atendidas pelo SUS.

Médico, jurista e pacientes são unânimes em identificar a capacitação de equipes e a conscientização dentre as demandas mais urgentes. “Percebo preocupação em evitar a perda de órgãos, mas ainda precisamos de sintonia maior entre equipes médicas e centros de doação. A ideia de uma fila única nacional é muito importante”, afirma o desembargador Cláudio Levada, que completa: “Numa época em que tudo se faz online, não podemos admitir perder o momento do transplante por falta de comunicação”.

Para o Dr. Ben-Hur Ferraz Neto, o foco dos governos deve ser a preparação de equipes médicas e a conscientização popular, para reduzir a taxa de recusa de doação dos familiares, hoje na ordem de 25%. “Tenho absoluta convicção de que a melhoria dos índices é uma questão de política. Na instituição, no município ou no Estado, o transplante deve ser uma prioridade.” Ele finaliza: “O mais importante é que as pessoas conversem em casa sobre a vontade de doar os órgãos. Apenas assim poderemos garantir que nossos familiares, num momento de dor, se lembrem de nossa vontade e salvem vidas”.

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1 Comentário Add your own

  • 1. Ministério  |  novembro 11, 2010 às 3:41 pm

    Olá, blogueiro (a),
    Salvar vidas por meio da palavra. Isso é possível.
    Participe da Campanha Nacional de Doação de Órgãos. Divulgue a importância do ato de doar. Para ser doador de órgãos, basta conversar com sua família e deixar clara a sua vontade. Não é preciso deixar nada por escrito, em nenhum documento.
    Acesse http://www.doevida.com.br e saiba mais.
    Para obter material de divulgação, entre em contato com comunicacao@saude.gov.br
    Atenciosamente,
    Ministério da Saúde
    Siga-nos no Twitter: http://www.twitter.com/minsaude

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